O que é o discurso racista?
O discurso racista consiste em qualquer manifestação que promova, incite ou induza à discriminação racial. Para o Comitê sobre a Eliminação da Discriminação Racial (CERD) da Organização das Nações Unidas (ONU), o discurso de ódio racista é qualquer “forma de discurso dirigido por terceiro que rejeita o núcleo dos princípios de direitos humanos, da dignidade da pessoa humana e da igualdade e procura degradar a posição de indivíduos e grupos na estima da sociedade” (CERD, Comentário Geral nº 35, parágrafo 10)
O discurso é entendido como qualquer forma de comunicação, seja oral, escrita ou comportamento. O Comitê da ONU salienta que o discurso racista pode se manifestar de diferentes formas e não se limita a observações explicitamente raciais, e pode assumir quaisquer formas de disseminação, “oralmente ou impressa, ou disseminada por meios eletrônicos, incluindo a internet e sites de redes sociais, assim como formas não verbais de expressão, como a exibição de símbolos, imagens e comportamentos racistas em reuniões públicas, incluindo eventos esportivos” (CERD, Comentário Geral, nº 35, parágrafo 7).
A Lei nº 7.716/1989 criminaliza diretamente o discurso racista no art. em seu artigo 20. “Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.”
De acordo com o Estatuto da Igualdade racial a discriminação racial ou étnico-racial é “toda distinção, exclusão, restrição ou preferência baseada em raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica que tenha por objeto anular ou restringir o reconhecimento, gozo ou exercício, em igualdade de condições, de direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural ou em qualquer outro campo da vida pública ou privada” (Lei nº 12.288/2010).
O discurso racista contribui para um ambiente de intolerância e ódio que divide ainda mais a nossa sociedade. Por outro lado, o crescimento dos discursos racistas é preocupante e perigoso, uma vez que, de forma explícita, deliberada, ou mesmo não intencional, ajuda a desencadear e multiplicar episódios de violência e hostilidade contra grupos e indivíduos determinados (quilombolas, povos indígenas, pessoas negras etc.).
Por que precisamos falar dos discursos racistas das autoridades públicas?
O discurso racista proferido por altas lideranças políticas, como chefes do poder executivo (prefeitos, governadores e Presidente da República); membros do poder legislativo (vereadores, deputados estaduais e federais, senadores e deputados); cargos de direção e assessoramento do governo federal (ministros, secretários de governo e presidentes de autarquias); ou ainda, por autoridades do sistema de justiça (promotores, juízes e servidores públicos de alto escalão) é especialmente grave. Em primeiro lugar, estas pessoas tem como função pública cumprir a Constituição, respeitar os direitos humanos, legislar, fiscalizar e propor políticas públicas. Em segundo lugar, o impacto negativo do discurso é de maior proporção, já que as autoridades têm potencial de influenciar a opinião pública.
A posição e o lugar de poder da pessoa que enuncia o discurso racista é um elemento central para a repercussão do discurso em incitação à violência, promoção ampla de atos de disciminação e utilização generalizada de linguagem estigmatizante discriminando pessoas e grupos. Ao proferirem discursos racistas, autoridades públicas contribuem para a criação de um ambiente político ainda mais hostial a grupos e pessoas que são protegidas pela Convenção sobre Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (CERD, Comentário Geral, nº 35, parágrafo 15).
Devido o impacto de tais discursos na incitação de desvalor ou violência contra grupos historicamente discriminados, o Comitê recomenda que essa prática deve ser combatida, para além de ser crime, recomenda-se que medidas disciplinares sejam aplicadas.
Por que o discurso racista da autoridade pública é uma violação de direitos humanos?
O direito à igualdade e à não-discriminação é um direito humano internacionalmente protegido, previsto também na nossa Constituição Federal, junto com a defesa da dignidade humana. Em 1965, a comunidade internacional comprometeu-se com o combate ao racismo e a discriminação racial através da Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial. O Brasil ratificou o texto da Convenção em 1969.
A Convenção aborda diretamente a relação entre racismo e incitação ao ódio racial, perpetuado através de discursos que disseminem ideias discriminatórias contra os grupos protegidos. De acordo com o artigo 4º da Convenção, os Estados signatários, o que inclui o Brasil, devem declarar como delitos puníveis:
(a) Toda a disseminação de ideias com base na superioridade ou ódio racial ou étnico, por qualquer meio;
(b) Incitação ao ódio, desprezo ou discriminação contra membros de um grupo em razão de sua raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica;
(c) Ameaças ou incitamento à violência contra pessoas ou grupos com base em sua raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica;
(d) Expressão de insultos, ridicularização ou calúnia de pessoas ou grupos ou justificativa de ódio, desprezo ou discriminação com base sua raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica; quando a isso claramente se soma o incitamento ao ódio ou à discriminação;
(e) Participação em organizações e atividades que promovam ou incitem a discriminação racial.
Por outro lado, o Brasil adotou leis específicas de combate à discriminação racial e de promoção de direitos à igualdade racial e obrigações de combate ao racismo. Além dissos, as autoridades públicas, em seus atos de posse, celebram um compromisso com o Estado Brasileiro e sua Constituição e, portanto, comprometem-se com o objetivo fundamental da República em promover o bem de todos, sem quaisquer formas de discriminação (art. 3ª, IV), e o princípio de repúdio ao racismo (art. 4º, VIII). O racismo no Brasil é considerado crime inafiançável e imprescritível na Constituição, no artigo 5º, inciso XLII.
Por que a liberdade de expressão, a liberdade de cátedra e a imunidade parlamentar não protegem o discurso racista da autoridade?
O direito à liberdade de expressão não é ilimitado. Assim como todos os demais direitos, seus limites encontram-se no exercício de outros direitos. Segundo o Comitê sobre a Eliminação da Discriminação Racial da ONU, “a liberdade de expressão não deve ser destinada à destruição dos direitos e liberdades de outros, incluindo o direito à igualdade e à não-discriminação” (CERD, Comentário Geral, nº 35, parágrafo 26). Ciente da importância da liberdade de expressão como elemento crucial no que diz respeito às questões políticas, o Comitê salienta que este exercício de liberdade de expressão, quando se trata de uma autoridade pública, acarreta deveres e responsabilidades especiais (CERD, Comentário Geral, nº 35, parágrafo 15)
O que se entende por “liberdade de cátedra” ou o discurso proferido em debates acadêmicos também encontra limite quando há incitação ao ódio, ao desprezo, à violência ou à discriminação. No caso do Brasil, negar fatos reconhecidos como “crimes contra a humanidade”, como a escravidão racial e o genocídio negro e indígena, não compreende liberdade de expressão e configura discurso racista.
A imunidade parlamentar material encontra os mesmos limites, como já decidiu o Supremo Tribunal Federal em julgamento de Habeas Corpus (HC). Segundo a Ministra Cármen Lúcia (HC 89.417-8/RO), “Imunidade é prerrogativa que advém da natureza do cargo exercido. Quando o cargo não é exercido segundo os fins constitucionalmente definidos, aplicar-se cegamente a regra que a consagra não é observância da prerrogativa, é criação de privilégio”.
O Comitê da ONU sobre discriminação racial reforça que “a proteção de pessoas contra discurso de ódio racista não é uma simples equação que opõe o direito à liberdade de expressão, de um lado; e a restrição da liberdade de expressão para beneficiar grupos protegidos, de outro lado. É preciso ressaltar que as pessoas e grupos que sofrem a violência do discurso racista não só têm direito à liberdade de expressão, como também têm direito a exercer esta liberdade livres de discriminação racial. O discurso de ódio racista silencia potencialmente a liberdade de expressão de suas vítimas”. (CERD, Comentário Geral, nº 35, parágrafo 28)
Qual o impacto do discurso racista das autoridades na vida de quilombolas?
As eleições de 2018 constituem um marco temporal relevante para analisar o aumento de declarações racistas e discriminatórias por parte de autoridades públicas no Brasil. No período anterior à disputa eleitoral destacou-se a declaração do então pré-candidato à presidência da república Jair Bolsonaro em abril de 2017. Em evento público realizado no Clube Hebraica na cidade do Rio de Janeiro, o então orador, principal convidado, deputado federal Jair Bolsonaro, adotou um discurso amplamente discriminatório em relação a diferentes minorias sociais (quilombolas, indígenas, mulheres, LGBTs e refugiados). Ao se referir a quilombolas afirmou:
“Eu fui em um quilombo em Eldorado Paulista. Olha, o afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas. Não fazem nada! Eu acho que nem para procriador eles servem mais. Mais de um bilhão de reais por ano gastado com eles. Recebem cesta básica e mais material em implementos agrícolas. Você vai em Eldorado Paulista, você compra arame farpado, você compra enxada, pá, picareta por metade do preço vendido em outra cidade vizinha. Por que? Porque eles revendem tudo baratinho lá. Não querem nada com nada.”
A partir de pressão social e denúncia da sociedade civil encaminhada ao Ministério Público, o caso foi levado ao Supremo Tribunal Federal mediante denúncia da Procuradoria Geral da República pelo crime de racismo.
Em 2018, o Supremo Tribunal rejeitou a denúncia e determinou o arquivamento do caso. De acordo com a decisão, o discurso não configuraria crime de racismo, as manifestações estariam protegidas no âmbito da liberdade da imunidade parlamentar. Ainda de acordo com o tribunal, a manifestação não seria criminosa, mas simplesmente uma conduta moralmente reprovável.
O discurso racista impune do então deputado federal Jair Bolsonaro é um marco simbólico de uma era em que os discursos racistas ganham visibilidade, reproduzem-se no alto escalão dos cargos públicos e passam incólumes. Sem a responsabilização dos autores, cria-se um ambiente de naturalização do racismo e da utilização de interpretações frouxas do direito de liberdade de expressão para autorizar o discurso de ódio racial de pessoas que ocupam altos cargos públicos. A repetição impune do discurso racista no alto escalão da burocracia do Estado por si só contribui para a incitação ao ódio e à discriminação racial.
A incitação ao ódio racial serve, pelo menos, a dois propósitos: (1) negar ou diminuir a dignidade de pessoas e grupos, utilizando estereótipos negativos para marcar todo um grupo, retirando-lhes a subjetividade e promovendo ideias acerca da sua inferioridade, (2) desencadear hostilidade e violência contra os grupos e pessoas discriminadas.
No caso de discursos racistas contra quilombolas, é preciso salientar que são especialmente perigosos porque já existe na nossa sociedade um padrão de discriminação contra esse grupo. Esses discursos têm servido especialmente para sua contínua exposição à violência e para a negação sistemática dos seus direitos.
É considerado discriminatório negar ou restringir o reconhecimento de direitos, que no caso dos povos quilombolas no Brasil, inclui o direito à reparação histórica garantido na Constituição de 1988, no art. 242, parágrafo 1º, sobre o ensino da História, e ainda sobre o reconhecimento de suas terras ancestrais no artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.
No centro do pronunciamento racista contra quilombolas por parte de autoridades públicas está a tática de justificar a denegação dos seus direitos territoriais através de afirmações que negam sua condição de sujeitos de direitos ou os impactos de crimes contra a humanidade que vitimaram a população de ascendência africana, como foi a escravidão.
É importante também termos atenção para o “clima econômico, social e político” atual do Brasil, em que a utilização de discursos racistas pelas autoridades públicas tem se acentuado. Um contexto marcado pelo aumento da violência racial, desmantelamento de políticas públicas e denegação de direitos aos povos quilombolas. Segundo o Comitê sobre a Eliminação da Discriminação Racial da ONU, dependendo do contexto, discursos “podem assumir um significado perigoso” conforme os efeitos potenciais do discurso de ódio. Se olharmos para o atual cenário político nacional, de aumento da violência contra a vida e direitos de povos quilombolas, além das tentativas de desregulamentação de direitos já garantidos, os discursos que negam a necessidade de reparação histórica da escravidão e às vítimas de racismo provocam efeito especialmente danoso às conquistas históricas quilombolas. (CERD, Comentário Geral, nº 35, parágrafo 15)
O que fazer para enfrentar a prática do discurso racista?
Os discursos racistas são uma violação de direitos humanos e combatê-los é uma obrigação de todas e todos: Estado, setores privados e sociedade em geral. O discurso racista da autoridade pública assume uma gravidade especial pelo seu alcance e repercussão em termos de promoção da discriminação racial e da incitação ao ódio e à violência racial. O Estado e suas autoridades máximas têm responsabilidades especiais no combate aos discursos de ódio racial.
Considerando a vasta legislação antirracista vigente no Brasil, a luta histórica dos povos negros e indígenas por justiça e igualdade e, ainda, que nos encontramos na Década Internacional (2015-2024) e dos Afrodescendentes das Américas (2016-2025), há diversas medidas que podem ser implementadas, dentre elas:
O discurso racista consiste em qualquer manifestação que promova, incite ou induza à discriminação racial. Para o Comitê sobre a Eliminação da Discriminação Racial (CERD) da Organização das Nações Unidas (ONU), o discurso de ódio racista é qualquer “forma de discurso dirigido por terceiro que rejeita o núcleo dos princípios de direitos humanos, da dignidade da pessoa humana e da igualdade e procura degradar a posição de indivíduos e grupos na estima da sociedade” (CERD, Comentário Geral nº 35, parágrafo 10)
O discurso é entendido como qualquer forma de comunicação, seja oral, escrita ou comportamento. O Comitê da ONU salienta que o discurso racista pode se manifestar de diferentes formas e não se limita a observações explicitamente raciais, e pode assumir quaisquer formas de disseminação, “oralmente ou impressa, ou disseminada por meios eletrônicos, incluindo a internet e sites de redes sociais, assim como formas não verbais de expressão, como a exibição de símbolos, imagens e comportamentos racistas em reuniões públicas, incluindo eventos esportivos” (CERD, Comentário Geral, nº 35, parágrafo 7).
A Lei nº 7.716/1989 criminaliza diretamente o discurso racista no art. em seu artigo 20. “Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.”
De acordo com o Estatuto da Igualdade racial a discriminação racial ou étnico-racial é “toda distinção, exclusão, restrição ou preferência baseada em raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica que tenha por objeto anular ou restringir o reconhecimento, gozo ou exercício, em igualdade de condições, de direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural ou em qualquer outro campo da vida pública ou privada” (Lei nº 12.288/2010).
O discurso racista contribui para um ambiente de intolerância e ódio que divide ainda mais a nossa sociedade. Por outro lado, o crescimento dos discursos racistas é preocupante e perigoso, uma vez que, de forma explícita, deliberada, ou mesmo não intencional, ajuda a desencadear e multiplicar episódios de violência e hostilidade contra grupos e indivíduos determinados (quilombolas, povos indígenas, pessoas negras etc.).
O discurso racista proferido por altas lideranças políticas, como chefes do poder executivo (prefeitos, governadores e Presidente da República); membros do poder legislativo (vereadores, deputados estaduais e federais, senadores e deputados); cargos de direção e assessoramento do governo federal (ministros, secretários de governo e presidentes de autarquias); ou ainda, por autoridades do sistema de justiça (promotores, juízes e servidores públicos de alto escalão) é especialmente grave. Em primeiro lugar, estas pessoas tem como função pública cumprir a Constituição, respeitar os direitos humanos, legislar, fiscalizar e propor políticas públicas. Em segundo lugar, o impacto negativo do discurso é de maior proporção, já que as autoridades têm potencial de influenciar a opinião pública.
A posição e o lugar de poder da pessoa que enuncia o discurso racista é um elemento central para a repercussão do discurso em incitação à violência, promoção ampla de atos de disciminação e utilização generalizada de linguagem estigmatizante discriminando pessoas e grupos. Ao proferirem discursos racistas, autoridades públicas contribuem para a criação de um ambiente político ainda mais hostial a grupos e pessoas que são protegidas pela Convenção sobre Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (CERD, Comentário Geral, nº 35, parágrafo 15).
Devido o impacto de tais discursos na incitação de desvalor ou violência contra grupos historicamente discriminados, o Comitê recomenda que essa prática deve ser combatida, para além de ser crime, recomenda-se que medidas disciplinares sejam aplicadas.
O direito à igualdade e à não-discriminação é um direito humano internacionalmente protegido, previsto também na nossa Constituição Federal, junto com a defesa da dignidade humana. Em 1965, a comunidade internacional comprometeu-se com o combate ao racismo e a discriminação racial através da Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial. O Brasil ratificou o texto da Convenção em 1969.
A Convenção aborda diretamente a relação entre racismo e incitação ao ódio racial, perpetuado através de discursos que disseminem ideias discriminatórias contra os grupos protegidos. De acordo com o artigo 4º da Convenção, os Estados signatários, o que inclui o Brasil, devem declarar como delitos puníveis:
(a) Toda a disseminação de ideias com base na superioridade ou ódio racial ou étnico, por qualquer meio;
(b) Incitação ao ódio, desprezo ou discriminação contra membros de um grupo em razão de sua raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica;
(c) Ameaças ou incitamento à violência contra pessoas ou grupos com base em sua raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica;
(d) Expressão de insultos, ridicularização ou calúnia de pessoas ou grupos ou justificativa de ódio, desprezo ou discriminação com base sua raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica; quando a isso claramente se soma o incitamento ao ódio ou à discriminação;
(e) Participação em organizações e atividades que promovam ou incitem a discriminação racial.
Por outro lado, o Brasil adotou leis específicas de combate à discriminação racial e de promoção de direitos à igualdade racial e obrigações de combate ao racismo. Além dissos, as autoridades públicas, em seus atos de posse, celebram um compromisso com o Estado Brasileiro e sua Constituição e, portanto, comprometem-se com o objetivo fundamental da República em promover o bem de todos, sem quaisquer formas de discriminação (art. 3ª, IV), e o princípio de repúdio ao racismo (art. 4º, VIII). O racismo no Brasil é considerado crime inafiançável e imprescritível na Constituição, no artigo 5º, inciso XLII.
O direito à liberdade de expressão não é ilimitado. Assim como todos os demais direitos, seus limites encontram-se no exercício de outros direitos. Segundo o Comitê sobre a Eliminação da Discriminação Racial da ONU, “a liberdade de expressão não deve ser destinada à destruição dos direitos e liberdades de outros, incluindo o direito à igualdade e à não-discriminação” (CERD, Comentário Geral, nº 35, parágrafo 26). Ciente da importância da liberdade de expressão como elemento crucial no que diz respeito às questões políticas, o Comitê salienta que este exercício de liberdade de expressão, quando se trata de uma autoridade pública, acarreta deveres e responsabilidades especiais (CERD, Comentário Geral, nº 35, parágrafo 15)
O que se entende por “liberdade de cátedra” ou o discurso proferido em debates acadêmicos também encontra limite quando há incitação ao ódio, ao desprezo, à violência ou à discriminação. No caso do Brasil, negar fatos reconhecidos como “crimes contra a humanidade”, como a escravidão racial e o genocídio negro e indígena, não compreende liberdade de expressão e configura discurso racista.
A imunidade parlamentar material encontra os mesmos limites, como já decidiu o Supremo Tribunal Federal em julgamento de Habeas Corpus (HC). Segundo a Ministra Cármen Lúcia (HC 89.417-8/RO), “Imunidade é prerrogativa que advém da natureza do cargo exercido. Quando o cargo não é exercido segundo os fins constitucionalmente definidos, aplicar-se cegamente a regra que a consagra não é observância da prerrogativa, é criação de privilégio”.
O Comitê da ONU sobre discriminação racial reforça que “a proteção de pessoas contra discurso de ódio racista não é uma simples equação que opõe o direito à liberdade de expressão, de um lado; e a restrição da liberdade de expressão para beneficiar grupos protegidos, de outro lado. É preciso ressaltar que as pessoas e grupos que sofrem a violência do discurso racista não só têm direito à liberdade de expressão, como também têm direito a exercer esta liberdade livres de discriminação racial. O discurso de ódio racista silencia potencialmente a liberdade de expressão de suas vítimas”. (CERD, Comentário Geral, nº 35, parágrafo 28)
As eleições de 2018 constituem um marco temporal relevante para analisar o aumento de declarações racistas e discriminatórias por parte de autoridades públicas no Brasil. No período anterior à disputa eleitoral destacou-se a declaração do então pré-candidato à presidência da república Jair Bolsonaro em abril de 2017. Em evento público realizado no Clube Hebraica na cidade do Rio de Janeiro, o então orador, principal convidado, deputado federal Jair Bolsonaro, adotou um discurso amplamente discriminatório em relação a diferentes minorias sociais (quilombolas, indígenas, mulheres, LGBTs e refugiados). Ao se referir a quilombolas afirmou:
“Eu fui em um quilombo em Eldorado Paulista. Olha, o afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas. Não fazem nada! Eu acho que nem para procriador eles servem mais. Mais de um bilhão de reais por ano gastado com eles. Recebem cesta básica e mais material em implementos agrícolas. Você vai em Eldorado Paulista, você compra arame farpado, você compra enxada, pá, picareta por metade do preço vendido em outra cidade vizinha. Por que? Porque eles revendem tudo baratinho lá. Não querem nada com nada.”
A partir de pressão social e denúncia da sociedade civil encaminhada ao Ministério Público, o caso foi levado ao Supremo Tribunal Federal mediante denúncia da Procuradoria Geral da República pelo crime de racismo.
Em 2018, o Supremo Tribunal rejeitou a denúncia e determinou o arquivamento do caso. De acordo com a decisão, o discurso não configuraria crime de racismo, as manifestações estariam protegidas no âmbito da liberdade da imunidade parlamentar. Ainda de acordo com o tribunal, a manifestação não seria criminosa, mas simplesmente uma conduta moralmente reprovável.
O discurso racista impune do então deputado federal Jair Bolsonaro é um marco simbólico de uma era em que os discursos racistas ganham visibilidade, reproduzem-se no alto escalão dos cargos públicos e passam incólumes. Sem a responsabilização dos autores, cria-se um ambiente de naturalização do racismo e da utilização de interpretações frouxas do direito de liberdade de expressão para autorizar o discurso de ódio racial de pessoas que ocupam altos cargos públicos. A repetição impune do discurso racista no alto escalão da burocracia do Estado por si só contribui para a incitação ao ódio e à discriminação racial.
A incitação ao ódio racial serve, pelo menos, a dois propósitos: (1) negar ou diminuir a dignidade de pessoas e grupos, utilizando estereótipos negativos para marcar todo um grupo, retirando-lhes a subjetividade e promovendo ideias acerca da sua inferioridade, (2) desencadear hostilidade e violência contra os grupos e pessoas discriminadas.
No caso de discursos racistas contra quilombolas, é preciso salientar que são especialmente perigosos porque já existe na nossa sociedade um padrão de discriminação contra esse grupo. Esses discursos têm servido especialmente para sua contínua exposição à violência e para a negação sistemática dos seus direitos.
É considerado discriminatório negar ou restringir o reconhecimento de direitos, que no caso dos povos quilombolas no Brasil, inclui o direito à reparação histórica garantido na Constituição de 1988, no art. 242, parágrafo 1º, sobre o ensino da História, e ainda sobre o reconhecimento de suas terras ancestrais no artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.
No centro do pronunciamento racista contra quilombolas por parte de autoridades públicas está a tática de justificar a denegação dos seus direitos territoriais através de afirmações que negam sua condição de sujeitos de direitos ou os impactos de crimes contra a humanidade que vitimaram a população de ascendência africana, como foi a escravidão.
É importante também termos atenção para o “clima econômico, social e político” atual do Brasil, em que a utilização de discursos racistas pelas autoridades públicas tem se acentuado. Um contexto marcado pelo aumento da violência racial, desmantelamento de políticas públicas e denegação de direitos aos povos quilombolas. Segundo o Comitê sobre a Eliminação da Discriminação Racial da ONU, dependendo do contexto, discursos “podem assumir um significado perigoso” conforme os efeitos potenciais do discurso de ódio. Se olharmos para o atual cenário político nacional, de aumento da violência contra a vida e direitos de povos quilombolas, além das tentativas de desregulamentação de direitos já garantidos, os discursos que negam a necessidade de reparação histórica da escravidão e às vítimas de racismo provocam efeito especialmente danoso às conquistas históricas quilombolas. (CERD, Comentário Geral, nº 35, parágrafo 15)
Os discursos racistas são uma violação de direitos humanos e combatê-los é uma obrigação de todas e todos: Estado, setores privados e sociedade em geral. O discurso racista da autoridade pública assume uma gravidade especial pelo seu alcance e repercussão em termos de promoção da discriminação racial e da incitação ao ódio e à violência racial. O Estado e suas autoridades máximas têm responsabilidades especiais no combate aos discursos de ódio racial.
Considerando a vasta legislação antirracista vigente no Brasil, a luta histórica dos povos negros e indígenas por justiça e igualdade e, ainda, que nos encontramos na Década Internacional (2015-2024) e dos Afrodescendentes das Américas (2016-2025), há diversas medidas que podem ser implementadas, dentre elas: