Apresentamos a seguir o resultado do levantamento de discursos racistas proferidos por autoridades públicas no Brasil nos anos de 2019, 2020 e 2021.
Com as eleições de 2018 escancaram um nível alto de violência racial no debate político-eleitoral, o que transforma os anos seguintes até os dias de hoje em anos-chave para o acompanhamento do crescimento do fenômeno do discurso racista enquanto ferramenta adotada pelas autoridades públicas. Com o objetivo de mapear casos relevantes de discursos de ódio racial por parte das autoridades públicas, realizamos um levantamento de notícias dos principais meios de comunicação, notícias publicadas na internet e redes sociais. Este levantamento permitiu-nos construir uma amostra de casos ilustrativos dos discursos racistas das autoridades públicas brasileiras de 1º de janeiro de 2019 a 31 de dezembro de 2021. Como resultado, chegamos a uma amostra de 94 casos de discursos racistas.
Não foram incluídos no mapeamento casos que configurassem injúria racial, crime previsto no artigo 140 do Código Penal, que consiste em ofender alguém com base em sua raça, cor, etnia, religião, idade ou deficiência.
Por um lado, a amostra permite-nos conhecer as dinâmicas de manifestação do discurso de ódio racial das autoridades públicas como um fenômeno cada vez mais recorrente e visível. Por outro lado, contudo, está longe de representar o universo de discursos de ódio racial que fazem parte do cotidiano das instituições públicas brasileiras. Em primeiro lugar, o racismo está presente na estrutura social e política da sociedade brasileira que, devido às marcas deixadas pela escravização no período colonial, sustenta uma sistemática naturalização de discursos racistas. Denunciar e dar visibilidade às situações de racismo é um caminho traumático e repleto de estratégias subjetivas e institucionais de silenciamento e ocultação.
Em segundo lugar, o levantamento é constituído majoritariamente pela recolha de notícias, o que implica que está limitado pelos critérios de visibilidade adotados pelos veículos de comunicação. Os 94 casos de discursos racistas permitem-nos conhecer situações ilustrativas, apontando-nos caminhos de interpretação sobre a realidade de consolidação do discurso de ódio racial no Brasil.
A proposta de mapear discursos racistas proferidos por autoridades públicas iniciou- se em 2020 a partir da necessidade de entender como se manifesta o ódio racial dentro da administração pública brasileira. Como resultado tivemos na primeira amostra de casos dos dois primeiros anos (2019 e 2020) um cenário crítico de aumento das manifestações racistas entre um ano e outro. De 2019 para 2020, o número de discursos racistas proferidos por autoridades públicas mais que dobrou (162%), saindo de um total de 16 para 42 casos.
Confira a análise completa sobre os número de 2019 e 2020
Ao todo em 2021 foram registrados 36 discursos racistas proferidos por autoridades públicas das mais diferentes esferas do poder público. Do total, 41% dos discursos proferidos foram voltados ao reforço de estereótipos racistas. Em comparação com 2020 esse tipo de discurso cresceu 33%. Logo em seguida estão os discursos que negam a existência do racismo com 25% das ocorrências. O que podemos observar é que mesmo diante da regressão dos casos anuais (-14%), todos os meses desde o início do governo Jair Bolsonaro, em 2019, são registrados casos de autoridades públicas que proferem discursos racistas.
Diante deste cenário, do total de ocorrências em 2021, 33% delas tiveram algum pedido de apuração dos fatos e/ou responsabilização, seja por meio de abertura de inquérito, ação ou procedimento administrativo contra as autoridades envolvidas; e desses pedidos de providência, somente 1 deles teve algum tipo de responsabilização.
Assim como nos anos anteriores, em 2021 as autoridades com o maior número de ocorrências foram os ocupantes de cargos de Direção e Assessoramento do Governo Federal (ministros, secretários e presidentes de autarquias) com 36% dos casos. Em proximidade estão os Vereadores com 33%. Em seguida está o presidente da república com 11%; Membros do sistema de justiça (juízes e procuradores) também com 11%; Deputados Federais com 5%; e Prefeitos com um único registro.
Considerando os três anos do levantamento, o maior número de ocorrências registradas foram proferidas por cargos de Direção e Assessoramento do Governo Federal (ministros, secretários e presidentes de autarquias), com 33% dos casos. Em seguida, estão discursos do Presidente da República e de Vereadores computando 17% dos casos, cada um. O levantamento ainda registra deputados estaduais, com 14%; Deputados federais com 9%; Membros do sistema de justiça (juízes e procuradores) com 7% e o vice-presidente e prefeitos com 1% cada.
Os dados apontam para uma propagação do uso do discurso racista entre as autoridades públicas brasileiras, nos três níveis da federação (federal, estadual e municipal). No entanto, é possível observar um marco na disseminação de discursos de ódio racial nestes três anos: dos 94 casos registrados, 20% (19 ocorrências) foram proferidos pelo atual Presidente da Fundação Cultural Palmares, Sérgio Camargo; e também de forma secundária está o presidente da República, Jair Bolsonaro, que registrou 18% (17 ocorrências) dos discursos. Sérgio Camargo representa o principal órgão criado para proteger e promover direitos para a população afro-brasileira e Jair Bolsonaro representa o mais alto cargo da administração pública.
Com isso, é perceptível a existência de uma estratégia governamental de desmonte das pautas voltadas à população negra a partir do discurso racista. Isso porque, é notável o engajamento das duas autoridades públicas na tentativa de modificação do entendimento social sobre a existência do racismo no Brasil. Os dados apontam que a maioria dos discursos no período são voltados para o reforço de estereótipos racistas e, logo em seguida, para a negação da existência do racismo. Somado ao fato da inexistência da responsabilização dessas autoridades, o ódio racial se naturaliza ainda com mais facilidade na sociedade e ao mesmo tempo impulsiona a prática por outras autoridades. Ou seja, as autoridades públicas praticam discursos racistas, ao serem questionados negam a existência do racismo e não são responsabilizadas pelas suas práticas criminosas, contribuindo com a consolidação e perpetuação de práticas racistas para além da esfera governamental.
O levantamento de dados permitiu mapear cinco tipos principais de discursos racistas das autoridades públicas.
Dentre os tipos mais comuns de discurso de ódio racial, destaca-se a reprodução recorrente de discursos voltados a reforçar estereótipos racistas e incitar a restrição de direitos da população negra.